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segunda-feira, 22 de junho de 2009

Ruta "Pedals de FOC" - Dia 2

22 Junho 2009
Gotarta – Espui


Assim que abro os olhos e ponho a vista para fora das paredes do meu quarto sou absorvido por uma luz tão brilhante que me cega por momentos. O dia amanhecia límpido, com uma luminosidade impressionante. Não soprava uma aragem e ainda assim a frescura da manha mantinha o seu toque suave, anunciando um extraordinário dia, inclusive com pouco calor. A humidade dos dias anteriores, essa tinha desaparecido por completo…

Novamente Mercês trata de montar uma mesa para o desayuno que mais parecia para um exército. Queria-nos mesmo bem alimentados a senhora!

Enquanto o diabo esfrega o olho a comida e bebida desapareceu de cima da mesa. Cerca de 45 minutos depois, hora a que chegou a jornalista e o camera-man da TV3 não sobrava nem uma fatia de bolo, nem uma fatia de pão tostado, nem uma rodela de chouriço, nada!


Pelas 07h00 da manha era este o panorama desde a sala de refeições…

Na foto da praxe falta Kharim, pois era quem sacava o retrato…

O arranque acabou por ser a horas decentes apesar de todo o aparato matinal no pequenino largo.
Rapidamente ganhamos ritmo devido ao excelente piso das pistas de terra e do asfalto predominante destes primeiros quilómetros. Depois de ultrapassada a povoação de Raons, apenas 2km mais à frente, rumamos na direcção de Malpás, onde começamos a enfrentar as iniciais subidas do dia. Assim aconteceu mais notoriamente depois de deixarmos para trás o cruzamento que leva a Ericastell, ponto a partir do qual teríamos pela frente 6km de subida constante, divida em 3km duros e 3km progressivos.
Como já tinha visto este filme dos “progressivos” assumi a subida com sendo de 6km duros, do principio ao fim.


Depois de passada Raons, a caminho de Malpás…

Ken seguido de Amparo, já a subir para a povoação de Castellars…

Cada um foi subindo e vencendo desnível como pode. Uns mais devagar, outros mais depressa, mas sempre a olho do companheiro que seguia atrás. Deste modo chegámos todos mais ou menos ao mesmo tempo à bonita povoação de Castellars, onde nos aguardava já Pep com a equipa da TV3, que depois de filmado o arranque, queriam agora fazer umas entrevistas – calhou à Suzanne o rebuçado – e filmar alguns planos do pessoal a pedalar nos trilhos. Para tal fizeram-se ali mesmo algumas filmagens e acordou-se que iríamos novamente ter a sua companhia no final da primeira subida, antes de começar a doer a sério.

Em Castellars era também necessário carimbar o C3 que fizemos sem pressas.
Soubemos pela dona da casa L’Abadia num Catalão quase imperceptível – decifrado por Pep – que o solitário madrileno tinha abalado daqui fazia tempo e seguia portanto, uns quilómetros mais à frente. O casal do tandem tinha pernoitado em Iran, mas levantando-se bastante cedo, estavam também mais adiantados no terreno que nós.


José e Amparo com Pep depois de carimbar mais um Controlo, em Castellars…

A povoação de Castellvell de Bellera, vista desde Castellars…

Eu, Kharim e Ken Hogan. Um Português, um Espanhol e um Inglês… – Onde é que eu ouvi já isto?

Depois de finalmente sacarem mais uns planos da malta a subir, deixamos a equipa da TV3 e Pep no início das rampas duras com que nos iríamos entreter na próxima hora. Uma belíssima pista de gravilha ganhava metros à montanha desde a povoação fixada a 1219m de uma forma gradual até que sem aviso prévio empina estupidamente e assim se mantém durante alguns quilómetros. Curva após curva, gancho após gancho vamos ganhando altitude rapidamente, até que volta a uma inclinação mais gentil sensivelmente a 3.5km do Collado de Fades para terminar a 1610m acima do nível do mar.

Ken Hogan, o “velhote” de 67 anos dizia frequentemente que não se importava de andar a pé a subir.

“I don’t mind walking” – Dizia!

Fiz muitas das duras rampas do dia, pedalando ao seu lado na conversa, ora em castelhano ora em inglês, enquanto ele as fazia sem qualquer esforço empurrando a sua bicicleta, muito mais ágil do que em cima dela! Marido da actual campeã do mundo de maratonas, na classe de veteranos e dono de variadíssimas experiencias de vida, inclusive uma estadia em Portugal que remontava aos anos 60, foi uma extraordinária companhia. Com um humor simples e de espírito jovial estava longe do perfil Inglês que temos como referência. Fixado com a família em Valência fazia 27 anos, tinha já mais de Espanhol a correr-lhe nas veias que de Inglês, e isso era notório.

Com o seu estranho sotaque, de Inglês traçado com Espanhol – ou o inverso, já nem sei – foi uma figura que me agradou imenso ter a oportunidade de ter conhecido.

Meteu-se nisto com as filhas depois destas lhe terem dito que eram apenas 50km por dia, durante 4 dias.
Como faz ciclismo de estrada, associou rapidamente os 50km a 1h30 de passeio diário…

“That’s cool! 1h30 each day, maybe 2 hours… That’s sound ok!” – Dizia…
“Now… In this terrain?! My God, I’m too old for this stuff. Those girls had played me well” – Blasfemava sempre sorridente e brincalhão!


Kharim antes de uma secção de duras rampas…

Daqui e passando pelo Barranco de Ert até à pequena povoação de Erta seria sempre a descer. No entanto as alegrias foram de pouca dura, pois pouco tempo depois já nos encontrávamos de novo com o peso sobre os ombros a empurrar forte os pedais. A quase desabitada povoação de Sas marcaria essa nova inversão de sentido, para o tornar de novo ascendente por mais 2.5km sempre por estradões e pistas de óptimo piso.



Na subida para o Coll de Sas, situado a 1518m de altitude…

Povoação de Sas a ficar já bem lá em baixo…

José e Amparo subindo…

Vistas surreais no Coll de Sas! Ao fundo o Maciço da Maladeta, marcando o tecto dos Pirenéus…

Amparo e Kate deliciadas apreciando o Prat d’ Or enquanto chega Kharim…

Povoação de Sentis, com a continuação da nossa descida serpenteante vale abaixo…

Desde o Coll de Sas a 1518m, já tínhamos descido até aos 1312m de altitude da povoação de Sentis, mas até Les Esglèsies teríamos ainda que baixar mais 276m, totalizando um desnível de quase meio quilómetro de descida ininterrupta através de 9km de belíssimo piso. Ao principio por trilhos e caminhos rápidos e ondulantes, mas desde a povoação de Sentis que a descida se fez por asfalto, mas não por isso menos interessante…

Em menos de nada chegávamos à povoação de Les Esglèsies, onde controlaríamos o C4 na Casa Batlle e onde faríamos também a merecida pausa para almoço, altura em que batiam ambos os ponteiros nas 14h!
A escolha recaiu nos bocadillos da ordem, uns de presunto e queijo, outros de tortilha, outros de salsichas e carnes da região, um sem fim de escolhas. O acompanhamento ficou a cargo de umas brutas saladas, bebidas fresquinhas e um geladinho para rematar, finalizando com o belo do cafezinho e o cigarrinho da praxe…


Esperando pelo almoço! Bocadillos para todos…

Á semelhança do dia anterior, parte do grupo quis ficar a descansar mais um pouco antes de encarar as duras subidas que estavam ainda por vir…
A Kate e o pai preferiram continuar após uns breves 45 minutos de paragem, pelo que aproveitei para seguir com eles.
Dividimos assim um grupo grande em dois mais pequenos, ambos providos de equipamentos de navegação. Um grupo equipado de GPS – o meu – e outro grupo equipado de JPS – o do José. Este termo quando dito pela Amparo levou-me a questionar sobre o que queria ela dizer com o acrónimo “JPS”.

“JPS quer dizer: José Positioning System!
Percebes? J de José… José Positioning System!” – dizia divertida Amparo!

A subida inicial na direcção de Buira fez-se por um asfalto de excelente qualidade, passando depois a estradões de piso muito bom, mas partindo de certo ponto só resistiria mesmo uma pista pedregosa por onde seguir.
Foi um inicio de tarde durito. As primeiras rampas de al-catrone tinham uma inclinação perigosa, roçando o limiar do possível como autênticas paredes que eram, mas o que se seguiu depois foi bastante mais violento. A inclinação não baixou, foi sendo intercalada com zonas menos duras, e apenas o piso foi substituído por um tapete de pedras redondas e soltas que cobria outro de pedras maiores cravadas no solo. Uma romaria que me abanou o esqueleto tantas vezes quantas consegui resistir aos solavancos e coices dados pela minha menina.


A povoação de Les Esglèsies vista do início da subida para Buira…

Pai e filha, os meus únicos companheiros da tarde…

A Kate não achava o mesmo, embora pior ainda estivesse por vir…

A cancela marcava o final do bom piso! Para cima seria diferente…

Uma zona bastante dura pelo piso bastante pedregoso…

A subida terminou no Coll de Pemir, onde após um breve tramo de descida entraríamos numa das zonas mais interessantes de toda a travessia. Pela inexistência de caminho ciclável foi necessário ir encontrando a passagem através de uma pequena encosta até dar com uma pequena abertura que serve de passagem para a outra vertente do vale, que nos presenteia a vista com umas formações geológicas bastante características e interessantes.

O trilho e a envolvente eram lindíssimos.
Por entre pedras a lembrar a superfície de Marte e tojos muito verdes corria uma finíssima linha que ziguezagueava por entre o caos de calhaus, onde com alguma perícia era exequível desfrutar de algumas dessas zonas em perfeita segurança, com o enquadramento paisagístico perfeito.
Foi o que fiz na medida do que me foi possível. Dava algum espaço aos meus companheiros, para depois pedalando, rapidamente recuperar essa distância. Este carrossel levou-nos lentamente ao Coll d’ Oli, ponto de viragem do caminho, sempre em sentido descendente, mas agora na direcção de Guiró.


Simplesmente fabuloso…

Junto ao Tossal del Portel, a 1541m

Para depois poder pedalar um bocadinho…

E rapidamente estava de novo ao pé dos meus companheiros…

Esperar mais um pouco…

E eis que já ali estão outra vez…

Kate no Coll d’ Oli, situado a 1525m de altitude. Onde o JPS se perdeu…

No Coll d’ Oli era importante não descurar a navegação e manter alguma atenção no mapa. O José – o JPS – não reparou no poste com todas as indicações necessárias para uma viagem sem percalços e enganchou no trilho da esquerda, também descendente, mas que levaria na direcção oposta à pretendida, desembocando num vale que não o certo. Demoraram 1h30 a corrigir o erro.

O trilho que tínhamos que seguir desde o Coll era absolutamente alucinante.
O pequeno e fugidio single-track que corria montanha abaixo, apesar de lindíssimo, não era desprovido de dificuldade técnica. Tardámos 1 hora para descer pouco mais de 2km. Uma autentica loucura! – No entanto, grande parte desse tempo foi esperando pela Kate e pelo pai que desesperaram a quase totalidade do caminho.


Sendero exemplar que nos levaria até à pequenita Ermita del Coll…

E outras mais fáceis mas não menos espectaculares…

A chegarmos a Guiró…

Povoação de Astell, onde ainda haveríamos de passar…

Foi uma parte final verdadeiramente dura para Kate que a certa altura viu o seu desviador da frente abdicar de funcionar. Depois de muitas horas desde Les Esglèsies estávamos de novo no asfalto e à porta da povoação de Guiró. A descida continuou até Astell e depois de uma curta subida chegámos a Gîte La Torre em La Torre de Capdella, onde estaria situado o C5 e que se encontrava fechado. Seguiríamos juntos mais um pouco até passarmos por Espui. Os meus companheiros seguiriam ainda mais 1.5km até ao aglomerado de casas de nome Central de Capdella.

Nesta altura já muito tínhamos falado, Eu e Ken, sobre onde e como andaria a restante malta. Estávamos a chegar bastante depois do previsível e muito por culpa da dificuldade do percurso da tarde. Bastava que eles arrancassem do almoço 1 hora depois para irem fazer a ultima parte do percurso já ao lusco-fusco.
Não fazíamos ideia que seria necessário acrescentar ainda o tempo necessário à correcção do engano no Coll d’ Oli e sem esse factor na equação, as expectativas temporais que tínhamos para a sua chegada nunca poderiam ser as sensatas.

Depois de o sabermos percebemos rapidamente que chegariam para lá das 22h e bem sob a frescura da noite. Ainda puseram a hipótese de chamar um dos táxis da organização, mas as meninas presentes no grupo não deixaram.
Há! Valentes!



À porta do C5, o ar de visível cansaço em Kate e o de apreensão estampado no rosto de Ken…

Enquanto Kate falava com a irmã, Ken e eu procurávamos o eventual problema residente no desviador da bike da Kate. Nada encontrámos e aparentemente nada deveria impedir o mesmo de trabalhar, mas a verdade é que estava tão colado no prato do meio que mais parecia cimento. Não se mexia por nada e o cabo estava partido.
Era estranho…

À minha pronta oferta de um cabo de substituição, Ken riu abertamente e disse:

“You’re crazy, can’t accept it! Maybe José have one… If he doesn’t… we’ll see! I sure can’t accept yours.” - E deixou-me muito pouco espaço de manobra, terminando com um enorme “Thank you” – e um terminal – “Fred, it’s not even in discussion!”

Separamo-nos à entrada da povoação de Espui, que subo ao engano pensando ser onde se situaria a minha dormida de hoje.
Corrigo a direcção a tomar depois de consultar um Azimute Falante – titulo que dou às pessoas “lá da terra” – e volto a descer novamente tudo o que tinha subido e que não tinha sido tão pouco quanto isso.
Mais umas pedaladas e avisto finalmente o Hotel…

Não foi das recepções mais calorosas mas foi uma verdadeira caixinha de surpresas aquela estadia.

Entro cansado pela porta principal adentro e dou comigo no bar do hotel, repleto de fumo de tabaco, espesso, terrivelmente mal cheiroso. Um velhote de aspecto pouco amistoso levanta a cabeleira branca por cima de todas as outras – que agora me fitam quietas – e solta um quase imperceptível: “Há! Deves ser tu el Português, no?” Passa, passa, acerca-te aqui.”

O barulho inicial da sala que parecia ter-se extinguido com a minha entrada era agora muito mais evidente. Falava-se, imaginem, do tal do Cristiano Ronaldo. Todas as atenções se viraram pois para aquele gajo de capacete que o dono do estabelecimento tratava por Português. Num instante era já invadido por perguntas sobre futebol – e eu num mundo à parte, completamente – sobre o que achava da transferência do fulano para o tal clube espanhol, etc e tal.

Fui salvo pelo senhor de cabeleira branca. Apaga a beata e diz-me que o siga para me mostrar os aposentos da noite!

O jantar foi muito bom!
De entrada marchou uma sopinha! De seguida vários mini pratos típicos da região. Coisas como pé de porco, bochecha de vitela ou redondo de vitela e mais uma especialidade de cogumelos que agora não me lembro o nome. Uma tábua de enchidos e queijo quente, salada e fruta da época para sobremesa. Em cima disto ainda comi mais um geladinho.
Fiquei, como será fácil de imaginar, cheio até ao topo!

Haveria ainda de acontecer um episódio caricato em que me vi, de repente, enfiado dentro do carro do tal senhor, acelarando direito a Gîte La Torre à procura do carimbo para controlar o Livro da Ruta. O espaço estava fechado já o sabíamos, mas não sabia eu que de alguma forma eles tinham combinado entre eles esta artimanha para que não ficasse sem carimbo. Não faço ideia porque o senhor insistiu para que o acompanhasse, mas durante todo o rápido caminho não trocámos uma só palavra. Encontrámos o carimbo e voltámos, novamente a 100 à hora por uma estrada de montanha cheia de curvas apertadíssimas e escura como breu, com uma largura máxima que não permitia a passagem de dois carros em simultâneo.

Despede-se com um curto “Desayuno às 7h00!”


No final do dia e fazendo contas pelos dedos, subimos um total de 1647m e descemos 1580m. Foram precisas 11 horas para vencer a miserável distância de 52km, incluindo paragens.

Local de pernoita: Hotel Montseny
http://www.pallarsjussa.net/montseny/

Continua...

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