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sábado, 16 de maio de 2009

"Travessia do Sul" - Dia 3

" Travessia do Sul "
Um aventura em solitário por trilhos e caminhos do sul de Portugal.

16 De Maio 2009
Cabeço da Eira – Aljezur


Ainda antes de adormecer na noite anterior tinha procurado no GPS por algum POI que me permitisse uma noite diferente das que estava a fazer. Não era tanto pelo chão da dormida ser sempre duro, mas sim por um banhinho em condições que já apetecia, e de que maneira devo dizer. Até o meu próprio cheiro já me incomodava e não fossem os toalhetes de bebé já há muito que me tinha jogado a um qualquer charco do caminho…
Ansiando por algo que me permita as comodidades suficientes para um banho daqueles, dedico 2 minutos a vasculhar nos POI’s do GPS e não é que encontro o Camping do Serrão, apenas a 2.5km dali…

Ainda pensei em desmontar tudo, arrumar de novo, fazer-me ao caminho e tentar encontrar o tal parque de campismo. Mas outras questões rapidamente se levantaram: Estaria aberto? Ainda existiria e caso sim, estariam a aceitar entradas àquela hora? Teria restaurante?!
Ainda me lembro vagamente de pensar que já não valia o esforço de sair do conforto das plumas do saco-cama…

Acordei completamente revigorado pelas 09h30 da manhã, mas fui-me deixando rezingar na preguiça de uma manha de Maio, tranquila e quente. Apetitosa.
Enquanto ia fervendo água para o 1º pequeno-almoço, que seria mais um par de mini-chocolates e uma caneca de chá do tamanho dos Himalayas, ia pensando no que fazer da etapa do dia.
Tinha inclusive posto a hipótese de arrancar já hoje para Sagres, mas isso iria modificar os planos que tinha traçado para ter boleia para casa desde o final da jornada, onde a Catita me iria buscar no Domingo.


Ainda a rezingar dentro do saco-cama…

A ideia base ficou por isso como sendo chegar até ao final da etapa que deixara incompleta na tirada anterior, almoçar qualquer coisa e procurar alojamento. Antes ainda passaria no Rogil para o 2º pequeno-almoço que entretanto começara já a arranjar lugar no estômago e seguidamente iria à descoberta do tal parque de campismo, que a existir seria a noite de hoje, com todas as comodidades que desejava.
E parecendo de propósito, o sítio do parque estava situado a 300m do trilho que seguia e depois de marcado o desvio arranco, finalmente, para mais uma jornada quando a manha passava já das onze horas…


Inicio do 3º dia…

Primavera em estado bruto…

“Turismo pois então, que há muito tempo não passeio por Aljezur…” - Era nisto que pensava enquanto dava as primeiras pedaladas.
O dia, à semelhança dos anteriores estava perfeito. O calor que já se fazia sentir era constantemente dissipado por uma brisa dócil, mansa e primaveril…

É-me difícil resistir aos encantos da natureza. Seja ela onde for. É-me quase impossível não deixar que essas paisagens e sensações me absorvam por completo, inteiro, e é assim perdido no mundo que chego, num tirinho, ao Rogil…


Olá Sr. Burro, como está?

E as meninas? Como têm passado?

Não me ligaram pevide! Pudera, era hora do pequeno-almoço…

Assim como contava, foi num dos cafés da vila que tomei o verdadeiro pequeno-almoço. Uma empada ainda quente, mais uma sandes de queijo, outro pastel de nata queimadinho com canela a gosto para rematar, café e cigarrito no final descansado na esplanada do lugar.

“Que puto luxo! Ainda saio daqui mais gordo” – Lembro-me de pensar enquanto a senhora continuava a encher o mostrador de bolos e outras delícias que me faziam brilhar os olhos, como criança numa loja de gomas.


Na “esplanade” do café no Rogil a ver passar o movimento…

Aqui vejo de relance passar um ciclista com a bicicleta completamente atafulhada de carga. Era atrás, era à frente, era em cima, era às costas, eu sei lá. No entanto a cena mostrou-se-me familiar, fiquei com a impressão que já tinha visto aquela figurinha antes, mas custava-me a crer…

Como já estava só na fase de contemplação do movimento da rua e do próprio café onde me encontrava, tomei a rápida decisão de ir ver se quem me parecia assim o era realmente. Volto a aprumar algumas coisas dentro dos alforges e continuo o meu caminho, sem me aperceber que de alguma maneira deixava aqui o meu pequeno tripé da máquina fotográfica e que me vinha a permitir fazer alguns retratos – só viria a dar pela sua falta já em Aljezur no final da tarde…

Não percebi isso, nem percebi o ciclista parado na berma da estrada a entrar para um café de garrafa de água na mão. Ou melhor percebi, mas outra vez de relance, embora desta vez tenha dado para um aceno solidário e para ficar com a certeza de que, sim senhor, era o moço que tinha visto na ciclovia da Costa da Caparica na terça-feira passada enquanto passeava por aquela zona e que me tinha chamado a atenção devido à enorme carga que transportava aliado ao facto de também eu estar a preparar a minha partida que me trazia aqui hoje…

Não parei. Segui pensando na aventura daquele puto – porque era mesmo um puto – mas rapidamente me perco desses pensamentos quando surge visível na curva da estrada a placa informativa do parque de campismo que procurava. Bem dita! Pelo ar novo desta o sítio parecia estar operacional e a ideia de banhos e jantar começava a formar-se já bem palpável e real debaixo da monha empoeirada carapinha.


Olha que coisa fixe, afinal existe...

O desvio que seria obrigado a fazer era apenas mais à frente, coisa que demorou uns dois minutos a surgir, assim como o camping, que se encontrava realmente aberto e com restaurante a funcionar em pleno, além de possuir lavabos “à séria”.
Na recepção soube também que o parque estava aberto até às 22h00 e que aceitavam entradas inclusive até essa hora, assim como o restaurante só fechava às 23h00.
Claro que fiquei logo a moer o facto de ontem não me ter lembrado de vasculhar os POI’s do GPS à procura de algo semelhante mais cedo, mas já nada podia fazer a não ser aproveitar porque, agora sim, já ali estava.

Ficou por isso resolvida a dormida e o jantar de uma virada só.
O arranque da jornada final contaria com estes poucos quilómetros a mais, mas que não faziam diferença alguma já que sendo sempre a descer, até serviam como aquecimento antes de iniciar a dura subida ao castelo de Aljezur, com a qual iria iniciar o ultimo dia de hostilidades.

Sinceramente pensei ainda em deixar montada a tenda, largar alforges e peso e ir, desta forma, rever Aljezur levezinho.
Mas resisti à tentação e depois de meia volta e retomar o track original, segui direito à povoação carregado como havia chegado até ali. A etapa já iria ser frouxa, não haveria de afrouxar mais ainda!
Era uma questão de orgulho pessoal que estava em jogo…

A chegada à povoação de Aljezur foi feita pela sua entrada norte, começando logo aí a subir. Esta é uma vila antiga, mas que se mantém cuidada e hospitaleira. De ruas empinadas e becos apertados, degraus acatitados em cotovelos sujeitados por entre muros pintados de cal, muito brancos, que queimam a vista ao mais incauto dos visitantes…

Considerei um pequeno luxo pedalar por entre o casario, longe das gastas passagens dos turistas de verão. Passar ao lado do olhar incrédulo da velhota que não acredita eu vou por ali de bicicleta e que me grita:

“Oh menino! Olhe que por aí são as escadas…”
“Ah obrigado, mas não faz mal. Eu cá me arranjo.”
– Respondo antes de olhar as escadas e de me ver obrigado a concentrar todos os sentidos numa só acção. Não cair!


Todas as vilas portuguesas devem ter um Largo do Pelourinho…

Recantos de Aljezur…

A igreja de Aljezur estava no caminho para o castelo. Passaria lá amanha pela fresca...

Mais um recanto de Aljezur… Ali mais à frente apanhei as tais escadas malucas…

Os museus por aqui estão todos muito bem tratados…

Mais recantos empinados de Aljezur. Aqui já só passam os da terra…

Junto ao rio, na zona baixa da vila…

Já junto ao rio foi onde acabei por parar e com agradável surpresa vejo novamente, encostado debaixo de uma grande sombra, junto à ponte, o meu amigo viajante do Rogil.
Aqui parei quase de imediato, até porque a hora do almoço ia correndo solta no dia, e depois de dois dedos de conversa fiquei a saber que se chamava Irún, de origem Belga. Andava de visita ao nosso país, dormindo em Pousadas da Juventude, onde as havia.
Ficámos um bocado à conversa, daquelas da treta, mas que sabem como mel. Acabei por ainda lhe dar algumas informações acerca do que lhe faltava percorrer, algumas recomendações sobre trajectos ou sítios que poderia gostar de visitar… Estava a chegar a uma zona que não sabia bem por que hipótese optar. Pretendia seguir para Faro e depois subir direito a Beja e daí sempre para norte, com desvio e passagem pelo OPorto, como lhe chamava…
Foi com o Irún que fiquei também conhecedor da existência de uma Pousada da Juventude na Arrifana, coisa que desconhecia completamente…
Uma coisa que lhe parecia fazer confusão era a nossa condução nas estradas e a falta de condições para ciclistas. Não entrava em ruas de sentido proibido porque dizia não ver a placa de “excepto bicicletas” como na terra dele. Não sabia se era obrigado ou não a andar de capacete e se podia circular nas estradas normalmente porque em nenhuma viu sinalética referente a bikes…
Acabei por ter que lhe explicar que sempre estava em Portugal e que, envergonhadamente, ainda estamos a dar os primeiros passos em relação às bicicletas na vida diária dos portugueses…

Acabei por lhe dizer, antes de nos separarmos, que poderia também querer visitar Sagres e daí seguir pela costa até Faro e depois então manter o seu plano inicial…ao qual respondeu com um murmúrio que já não consegui traduzir.
Um adeus e lá foi ele à procura da dita pousada enquanto eu pedalei direito à Aldeia Nova, povoação irmã de Aljezur, sobranceira a esta pelo lado de nascente.

Acabou por ser o palco do meu almoço o largo da igreja, junto ao café Colmeia, com um grupo daqueles sexagenários hippies que se vão encontrando nos Algarves e que por aqui se vão perdendo no tempo. Malta porreira e entre inglês, alemão, alentejano e português lá nos fomos entendendo o suficiente para nos rirmos e todos passarmos um bom bocadinho já que eles faziam musica e ritmos com as coisas que tinham à mão, tipo aquela banda britânica muito famosa, e eram bastante comunicativos e divertidos.


Auto-retrato já com a máquina em cima de um banco do jardim em Aljezur…

Aldeia Nova onde acabei por almoçar…

Foi muito bom! O meu almoço foi à sombra de um grande chapéu, com uma companhia divertida e alegre, uma enorme sandes de carne assada, acompanhada de salada e mais uma Coca-Cola.
Naquela mesa, todos eles eram “da terra”. Os que lá haviam nascido e os que por lá haviam escolhido morar, coisa que aliás transparecia bem na pele já castanha, outrora branca, enrugada e queimada pelo sol deste nosso tão hospitaleiro cantinho, da malta que acusava a nascença noutras paragens mais frias desta Europa.


Ao lado do café Colmeia…

Igreja de Aldeia Nova…

Labuta dos campos de forma tradicional ainda em vigor por estas bandas…

Ainda dou mais uma voltinha por Aljezur, que de plana só tem mesmo a zona do rio. Toda a povoação se desenvolve na encosta do monte originando sempre bastantes subidas, normalmente empedrado mas em bastante bom estado.

Volto a encostar numa das esplanadas, com uma vista magnifica, desta vez para me demorar numa leitura que vinha mantendo à noite, que me estava a interessar e assim mais duas horas fugiram voando ao sabor dos sonhos e quando me propus regressar de novo ao parque de campismo eram perto das 17h00.
Calmamente percorri aqueles metros já conhecidos e que me levariam à última subida do dia, longa, que duraria 2.5km, mas que tinha que vencer obrigatoriamente.
Fui pedalando tranquilo enquanto pensava já na água a bater-me na cara no duche e no jantar, que seria de rei, e pelo qual estava disposto a pagar o que me pedissem e, acima de tudo em como seria a ultima noite antes das areias da praia da Mareta, o meu destino final. Pensava em como estava quase lá…

Mas a penosa subida haveria de me obrigar a algum puxa/empurra porque devido a uma condução menos atenta deixei a direcção fugir e… ao mesmo tempo que forço a pedalada para corrigir a desatenção, a frente levanta-se sem mais avisos e quase me senta no chão de tão distraído que vinha.
Arfando feito parvo e de coração aos pulos fico a olhar o que restava da subida…


O que faltava subir…

Com Aljezur a ficar lá em baixo…

As boas vindas…

O parque com espaço de sobra…

A minha menina livre do peso…

O suporte que era alvo de atenta inspecção todas as noites…

Preparada para mais uma noite, a ultima…

Enquanto montava e aprontava o estaminé chegou às minhas vizinhanças um outro ciclista, também sozinho, ainda com mais carga que o Irún.
Quando ele começou a montar o seu espaço percebi porque. Desde tenda daquelas antigas, como aliás também tive, em triângulo e mais rudimentar ainda que o sistema de luz que trazia montado na bicla, daqueles de bobine antigos que encostavam no pneu e assim davam uma luz fraquíssima.
Montou inclusive estendal. Parecia ele que estava ali para ficar 15 dias… Estaria?!

De qualquer forma perdi-me um pouco a mirar aquela lição de vida, mas sem nunca me fazer notado. O senhor apresentava ter mais idade que o meu pai, cabelo totalmente branco, franzino, mas claramente habituado àquela rotina. Quantas aventuras não lhe pesariam já na agastada mochila? Quantos quilómetros de liberdade não trariam já aquelas pernas pedalados?

Tudo perguntas que ficaram sem resposta, entre outras, obviamente…
Fui desperto desta nostalgia por um ronco na barriga que se deve ter ouvido na recepção do parque. Até fiquei embaraçado, embora nas imediações não houvesse agora vivalma.

Peguei na carteira e no telemóvel e fui direito ao restaurante, comer por hoje e por amanha que bem iria precisar.

Foi o melhor que podia ter feito. Num espaço com um aquário gigante, como nunca tinha visto, repleto de peixes tropicais de todas as cores e feitios, bem tratado com visível dedicação comi como um guerreiro depois da batalha. Um enorme bife da vazia grelhadinho com molho de natas e lima acompanhado de muita salada e um geladinho para sobremesa. A bebida, claro, uma cola fresquinha e mais meio litro de água que acabei junto com um café.
Divinal! Sentia o organismo a absorver lentamente todo o combustível que lhe ia dando, até ficar saciado por completo.

Mesmo sabendo que o dia de hoje não tinha sido de forma alguma cansativo, de energias renovadas sentia-me melhor ainda, com o entusiasmo e força nas pernas suficientes para encarar o dia de amanha, durante a curta caminhada de volta à tenda, como quase garantido. Não sou de deitar foguetes antes da festa, mas tinha as expectativas bem altas…

Depois dos telefonemas da praxe para casa, de mais um pouco do “Apelo da Selva” que me agarrava à leitura como já o havia feito outrora, muitos anos antes.
Acabo por me render ao sono e ao pesar das pálpebras pelo que me deixo adormecer tranquilo com o despertador afinado para as 06h30 da matina, para a ultima e mais ansiada jornada deste passeio. Afinal sempre iria conhecer “in loco” os trilhos da praia do Amado, Castelejo e outras pérolas que tais…

Jóias essas que se encontravam agora a poucas horas de distância…

Resumo da etapa:
Hora saída: 11H30
Distancia: 21.5km
Tempo total: 04H56
Tempo movimento: 01H55
Velocidade media: 11.2km/h
Velocidade máxima: 32.1km/h
Acumulado de subidas: 317m
Acumulado de descidas: 333m



(Continua...)

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