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sexta-feira, 15 de maio de 2009

"Travessia do Sul" - Dia 2

" Travessia do Sul "
Um aventura em solitário por trilhos e caminhos do sul de Portugal.

15 de Maio 2009
Montado do Adaíl - Cabeço da Eira


Depois de uma noite bem dormida o despertar só podia ser tranquilo. Assim aconteceu e ainda o relógio não marcava as seis da matina já eu estava de olho pregado no tecto da acatitada tenda…
Minutos depois já a água borbulhava para novo pequeno-almoço, em tudo semelhante ao lanche do dia anterior. Cereais com chocolate, um luxo!

A posição que tinha escolhido, já o previa, permitia-me dar as boas vindas aos primeiros raios de sol que começaram a surgir pelas 06h20…No entanto a azáfama de arrumar de novo tudo nos alforges ao mesmo tempo que engolia o pequeno-almoço demorou quase uma hora e foi assim que pelas 07h30 me fiz de novo ao caminho, de ânimo alto e mais confiante neste binómio homem/máquina, inclusive. O arranque foi, por isso, com o sol a surgir já vigoroso por detrás dos montes da serra do Cercal.
Por esta altura já me perguntava se não iria ter calor assim que começasse a pedalar, mas foi preparado para algum frio que comecei a rolar os primeiros metros do 2º dia desta minha jornada.


Inicio do 2º dia...

Trilhos rolantes e de bom piso a permitir novamente andar relativamente bem e fazer médias confortáveis que garantissem as horas que tinha estipulado para cada dia. Alguns quilómetros, poucos, depois de ter saído do montado de Adaíl comecei a ficar com calor. Isto pelas 08h00. Felizmente que sempre soprou um vento bastante agradável e “amigo” já que continuava a soprar nas minhas costas, chegando mesmo a aliviar-me nalgumas subidazinhas. Escusado será dizer que muito lhe agradeci durante quase todo o trajecto…


Trilhos rolantes e rápidos...

À medida que me ia aproximando de Troviscais os caminhos iam ficando um pouco mais duritos exigindo sempre bastante atenção devido à nervosa frente da minha menina… Algumas das vistas eram simplesmente fantásticas, onde nalguns casos, ainda saltitavam aqui e ali single-trails de fazer correr a imaginação, e nem era preciso ter assim tanta quanto isso.


Vales espectaculares com pequenas pérolas precisosas escondidas...

Sempre bastantes ribeiros para refrescar os pézinhos e a cara...

O caminho que ia ficando para trás...

As preciosas vistas...

Já em Castelão tomei o café da manha que ansiava há já duas horitas. Aceitei, a convite da minha menina claro está, um pequeno descanso num recanto bem agradável ao lado do manhoso café. Mais umas fotos aqui e ali, um cigarrito e vai de me pôr de novo ao caminho, desta vez durante alguns quilómetros de excelente asfalto que desfrutei que nem um doido, já que foi sempre a descer durante alguns largos minutos, de vento na cara para lavar a poeira e a alma…


A minha menina em Castelão...

Auto-retrato...

Depois de uma curva na estrada avisto algo que identifico de imediato. Em sentido contrário ao meu circulava uma ciclista também sozinha e de alforges na bike. Um olá de sorriso aberto e ambos seguimos viagem rumo aos nossos destinos. Qual seria o dela? Pelo bronze que trazia já pedalava fazia uns dias. Até onde iria? Foram perguntas, como outras, que me passavam na gazua nalgum recanto do cérebro enquanto rolava os metros que nos iam separando, pedalada a pedalada…
Entro novamente em caminhos de terra para enfrentar nova subida! Aqui e antes de olhar atentamente o GPS apanhei um susto devido à parede que se começava a mostrar à minha frente, estupidamente grande e empinada. Felizmente que uma leitura atenta ao mapa e lá me apercebo que o traço rosa não cruza perpendicularmente as curvas de nível e percebo o trilho que sai à cota e que se mantinha escondido por entre a folhagem.
Respirando de alívio acabo contornando o monte por um trilho de inclinação ridícula deixando-me quase como envergonhado com a minha frouxidão de há uns momentos antes…


Novamente o que ia ficando nas minhas costas...

Já cheirava a Odemira.
Mais uns metros rápidos em asfalto, desvio à esquerda a 100 à hora – pelo menos parecia – e minutos depois entro na bela e sempre bem cuidada povoação de Odemira, onde cheguei pelas 11H15. Os recantos desta pitoresca cidade alentejana já me são bem conhecidos de outros tempos. Dos tempos de criança e das férias de verão com três meses de largo. Das passeatas com os avós à Quinta dos Fetos, dos mergulhos no Mira e do lodo até meio das canelas, das sardinhadas nas esplanadas das imaculadas praças, dos velhotes idos e das histórias do mar e de África à sombra de um toldo já gasto pelo sol tórrido de verão na Zambujeira e Odeceixe.


As flores dos canteiros de Odemira...

As margens do Mira...

Na saída Oeste, pela Ponte Velha, de Odemira...

Os trilhos à saída de Odemira, sempre ladeando o rio Mira foram de uma beleza espectacular.
Começando com um single-trail bastante fechado e que acabava num pequeno troço de levada de água, também de um palmo e no qual se circula por uns metros até sair para uns estradões de excelente piso que cruzavam algumas pequenas ribeiras anunciando já a passagem do Mira a vau mais adiante…


Uma levada de água...

Sempre ladeando o Mira...

Bons trilhos e boas paisagens. Do melhor...

Ainda antes desta passagem que ansiava, a hora do almoço surgiu voraz e rapidamente me vi forçado a encostar na única sombra que avistava no caminho. Um grande e antigo sobreiro.


Paragem obrigatória. A fome assim o manda...

O local da paragem ficou com o simples nome de “Restaurante Sobreiro II”. De ambiente acolhedor e tranquilo, paisagens idílicas e boa cozinha, não posso deixar de recomendar para futuras visitas…
Não posso deixar de referir que a sombra apetecia porque o dia estava limpo como cristal e o sol do meio-dia queimava já forte no céu…

Através de paisagens deslumbrantes chego à passagem em que o caminho cruza o Mira deixando duas hipóteses para quem quer seguir caminho. A passagem a vau ou um pequeno desvio que contorna pela esquerda. Foi a direito e molhando os pezinhos que ultrapassei esta pequena, mas perfeita, dificuldade. A pedalar está claro que as emoções são para ser vividas, todas e em doses concentradas, faz favor.


Sempre adiante...

Mais paisagem e trilhos muito bons...

Novamente, vistas do que ia ficando para trás...

Finalmente a tão aguardada passagem do Mira...

Em Sabóia passei às 13h45 e em Viradouro, onde contava acabar a etapa do dia, às 13h50. Que raio de contas fiz eu inicialmente?! Levava já quase 70km nas perninhas, sem contar com os do dia anterior.
No entanto sentia-me óptimo e estava largamente a exceder as médias com que tinha, em casa, baseado os cálculos para as distancias e duração das etapas. Estava a andar mais rápido do que tinha previsto e encontrava-me melhor fisicamente do que esperava. Só boas notícias, portanto…

Contava abastecer de água e comer qualquer coisa num café que pensava existir em Viradouro, já que essa informação constava dos tracks que obtive, os quais iria seguir na 3ª e 4ª etapa da passeata.
No entanto de café nem sinal, e da pequena oficina também não rezava muito a história...


Em Viradouro...

Já terá sido uma oficina ou ainda funcionará?!

Estava no suposto final do 2º dia, às 14h00, com vontade e animo, quando dou por mim a pensar que o melhor seria fazer já alguns quilómetros da próxima etapa, diminuindo a dificuldade desta na sua extensão total e principalmente no seu acumulado. O que tinha programado para ser a 3ª jornada não seria a mais longa mas seria mais dura devido ao seu acumulado total de subidas que rondava os 1500m.
Por isso sigo sem pensar muito no caso de onde iria dormir ou parar, mas começo a rever mentalmente o que iria ter de contacto com o “mundo”, pois já não levava assim tanta água, a comida que levava precisava de ser reforçada com qualquer coisa extra e sabia que não iria encontrar nada mais por muitas horas de viagem. Decido então voltar atrás de novo a Sabóia, pequena povoação mas que tinha o que eu precisava para satisfazer as minhas mais básicas necessidades. Uma gorda sandes mista saltou embrulhada para o CamelBak ao mesmo tempo que outra igual de rechonchuda me saltou pela goela abaixo empurrada com mais uma Coca-Cola fresquinha. Um pastel de nata e o belo do cafezinho foram um pequeno extra para afagar o espírito.


Em Sabóia junto ao Mercado Municipal...

O Mercado de Sabóia...

Só máquinas...

Auto-retrato em Sabóia...

Os 3 litros de capacidade do meu CamelBak ficaram sem espaço para respirar, cheios até à última gota. A necessária troca de baterias do GPS e da máquina fotográfica, um cigarrinho, umas fotos da paragem e ala que se faz tarde que para a frente é que é caminho!

Percorro novamente aqueles 2.5km até Viradouro e os 8km que já tinha feito antes de me decidir a regressar a Sabóia…
Tudo para a frente era já ganhos em relação ao previsto e por isso foi com tranquilidade redobrada que me fiz ao caminho, sem qualquer tipo de pressas, sem qualquer tipo de programa, apenas com a ideia de que quando estivesse a ficar sem luz do dia seria forçado a encostar porque só levava luz traseira e um pequeno frontal daqueles de cabeça, que mal serve para cozinhar.


Vi muitas destas...

Ja nos trilhos da 10ª etapa da Transportugal...

Os trilhos da Transportugal sabia-o, não são para brincadeiras. É uma prova dura e feita para malta dura.
Assim como foram as subidas da tarde. Duras!
Não tanto pela inclinação, mas pelo piso que chegou mesmo a ser impraticável em algumas zonas. Eu fiz no puxa/empurra grande parte da subida que sai desde Vale Porco e sobe ao topo da serra de Monchique e só imaginava aquela malta a esmagar os pedais por ali acima, em como até devem levar lume… mas que também levavam muita porradinha. Não admira serem tão bem tratados no final das etapas.
Um luxo de trilhos, a bem da verdade!

A ideia era portanto ganhar apenas alguns quilómetros de avanço face ao programado e nada mais. Com o sol a pino, mas completamente reabastecido, sigo adiante para descobrir os trilhos a gosto de uma das lendas vivas do btt português.
E que luxo de percurso e que extremo bom gosto...
Ribeiras e mais ribeiras envoltas em cenários idílicos, contrastando com caminhos vermelhos rapidíssimos, sempre rodeados de paisagens sublimes.


Terra vermelha e cheiros de mil e uma cores...

Mais uma ribeira se aproximava...

Aqui a ribeira era o caminho. A água chegou aos alforges...

Ao menos ia-se mantendo limpinha! Para estar aprumadinha na chegada ao destino...

No final de uma descida, a que ligava a Vale Porco, reservava uma outra surpresa das antigas.
De novo, vários cães saltam duma das curvas do caminho junto a uma casa antiga mas habitada. Todos grandes e ávidos por se fazerem ouvir cada um mais alto que o outro. Todos soltos a ladrar-me a um palmo dos calcanhares...
Aquela técnica da bike entre nós e o cão?! Pffff, esqueçam… Já tinha bichos entre mim e a bike, de um lado, do outro. Só faltava em cima, já que em baixo pouco faltou também… O caos!
Com muito stress e medo à mistura lá fui andando sempre com vozinha mansa, sempre a dar-lhes toda a razão, sempre com beijinhos p’ro ar e tal, lá passei novamente sem males maiores com a dona da casa que cuidava da horta olhando toda a cena, visivelmente aborrecida por ter importunado a tranquilidade daquele belo recanto com a chiadeira dos meus já cansados travões, nem aí para o meu visivel estado de pânico.


Algures...

A descida que escondia mais um encontro imediato de 3º grau...

Ainda mal refeito do susto anterior eis que chego a Vale Porco.
Local pouco aprazível para paragens e com mais casas perto do caminho a seguir, os sentidos mantinham-se alerta para mais indesejáveis encontros canídeos. Há quem goste eu sei, mas estes bichos começam realmente a mexer-me com os nervos...

No entanto esses instintos foram sendo vencidos, lentamente.
Foram gradualmente substituídos por outros durante as mais de duas horas seguintes que passei a subir, muito desse tempo puxando e empurrando a bike montes acima, com os seus 20kg, passando alguns dos mais altos que a serra de Monchique tem para oferecer, fazendo da tarde uma autêntica romaria no que toca a médias, mas soberba no que refere às vistas que o horizonte permite.


Vale Porco. Aqui começariam as verdadeiras subidas da tarde...

Tudo à volta começava a ficar mais baixo...

E eu cada vez mais alto...

Sempre a subir...

O piso a tornar a já dura e longa subida numa verdadeira e penosa ascenção à lá pata...

Cada vez mais empinada...

Mas eu também não tinha pressas, lá haveria de chegar...

Pelas 17h50 ainda andava perdido no rompe-pernas do alto da serra. Às 18h00 era hora de ligar o telemóvel para dar noticias lá para casa e supostamente dizer que já estava instalado e a descansar, mas aqui ainda estava bem embrenhado no denso eucaliptal que cobre esta zona da encosta pelo que só às 18h45 é que falei com o meu pai e a Rita e lhes disse que ainda pedalava e que o iria fazer até que houvesse luz disponível. O meu pai ficou de me ligar de novo às 19h30, hora a que ainda em me divertia em cima dos pedais, mas num vale tal que de rede nem sinal.


No final da grande subida, era esta a paisagem...

Já depois de mais umas quantas subidas, o que ia ficando feito...

Já descer da serra...

Magnificos vales...

Mais ribeiras e sitios de encantar... Esta é a do Reguengo...

Dez minutos depois e com os últimos raios de sol a desaparecer rapidamente no horizonte acabei por parar no primeiro sitio em que havia algum sinal de telemóvel e me permitia algum conforto para passar a noite.


A sair do concelho de Monchique...

Acabei a dormir no “Hotel Cabeço da Eira” no pinhal do mesmo nome a 13km do final de uma etapa que, supostamente, seria a de amanhã.
A montagem da tenda foi ainda mais rápida que no dia anterior. Às 19h40, hora a que parei o sol brilhava ainda no horizonte, mas rapidamente foi cedendo lugar à noite que nos acolheu quente e sem vento.
A sandes mista que comprara em Sabóia nem teve tempo de respirar fora do tosco e mal tratado embrulho. Acho que saltou directo da mochila para dentro da barriga sem passar pelo lugar de partida. As barritas estavam contadas, tinha comido a dose de dois dias. Jantar já não tinha, contava jantar qualquer coisa em Sabóia, muitos quilómetros lá atrás. Devido ao peso tudo vinha racionado.
A única coisa que restava de sobra eram mini-chocolates, dos quais engoli um par e saboreei pausadamente outro, sempre acompanhado de chá, muito chá.
A par com a sandes foi este o meu jantar.
Não fosse ter comido bem durante todo dia, certamente que cairia na esteira a roçar a exaustão. Ao invés disso, continuava a sentir-me bem na forma e condição, aliado ao facto de estar a meia dúzia de quilómetros de Aljezur em que tinha assegurada pelo menos uma refeição quente amanha à noite, com a qual vinha aliás a contar. Como logo pela manha iria passar no Rogil estava resolvido o pequeno-almoço que me asseguraria que seria “potente”.


Final de tarde no Pinhal do Cabeço da Eira...

Sempre acabei fazendo nada mais que 114km, numa jornada de 12h de passeio, com um acumulado considerável de subidas.
Praticamente conclui a que seria a etapa mais dura da travessia, pelo que me deixo cair no saco-cama, cansado mas de modo nenhum exausto, feliz e de grande sorriso na cara.
Levava o meu projecto a meio e com tudo a correr sobre rodas. Não tinha tido ainda um furo ou uma avaria, os suportes estavam a aguentar a tareia e a cumprir na perfeição, coisa que era o meu grande receio, e eu, o meu segundo maior receio, estava também a fazer, e a cumprir, a minha parte.

Ainda assim, todo o entusiasmo desta vitória pessoal não foram mais fortes que a fadiga e o desgaste da etapa e rapidamente me deixei embalar pelos sons do mundo até ao outro dia de manhã.

Acordasse à hora que acordasse, só tinha mesmo 13km para fazer…

Resumo da etapa:

Hora saída: 07H35
Distancia: 114km
Tempo total: 12H14
Tempo movimento: 08H54
Velocidade média: 12.8km/h
Velocidade máxima: 51.1km/h
Acumulado de subidas: 2040m
Acumulado de descidas: 2008m


(Continua...)

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