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quinta-feira, 14 de maio de 2009

"Travessia do Sul" - Dia 1

Olá pessoal.

É já com alguma saudade e nostalgia que aqui vos trago o relato da minha travessia que fiz pelo sul deste nosso país, em 4 dias de viagem, sozinho e em total autonomia.
Arranquei no dia 14 de Maio para uma jornada de quase 300km por esses caminhos fora, essencialmente fora-de-estrada, com intuito de chegar a Sagres, sem pressas e sem stresses. Apenas com o intuito de desfrutar da aventura e de bom btt.
A ideia por detrás deste projecto foi a de treinar para uma outra tareia, que se avizinha, mas sobretudo cumprir um sonho dos tempos de adolescência que se mantinha latente, em fogo brando desde há muito...

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" Travessia do Sul "
Um aventura em solitário por trilhos e caminhos do sul de Portugal.

14 De Maio 2009.
Setúbal – Montado do Adaíl


As ruas eram ainda iluminadas pelos candeeiros eléctricos quando chegámos à estação dos Ferry em Setúbal, eu e a Rita, pouco passava das 05h30 da manhã.

Estava a minutos da partida para a minha aventura por trilhos do sul deste meu Portugal, rumo a terras conhecidas e desconhecidas, lugares comuns, outros nem tanto. Do alto dos meus 32 aniversários, estava de partida para a concretização de um sonho antigo, da juventude e dos tempos das eternas revoluções interiores. Antes tarde que nunca, acho!

Com tudo afinado, arrumado e apoiado em cima de um suporte de resistência duvidosa lá deixei o conforto do carro enquanto me afastava em direcção às bilheteiras do ferry que me levaria até Tróia, onde começaria a minha rumaria ao sul, em total autonomia.


Em Setúbal...

Com tudo programado com algum tempo de antecedência, sabia exactamente com o que podia contar em cada uma das quatro etapas que tinha estipulado, sabia de cor as altimetrias e a que quilometragens aconteceriam as subidas duras, quando deveria descansar, onde poderia reabastecer de comidas e muitíssimo importante, de água. Sabia onde iria dormir, sabia quase tudo o que podia sobre a aventura à qual já não podia agora fugir.
Sabia tudo sim, mas na teoria, já que os quase 300km que se seguiram haveriam de me provar o contrário.

Acompanhando o nascer da aurora, no barco o frio era mais que muito. Tremiam-me os dentes, as mãos, as pernas, o corpo todo. No meio de um porão vazio, apenas 2 carros e meia dúzia de almas faziam companhia à tripulação, esses bem resguardados do vento numa das cabines de passageiros. Trabalhadores de Tróia e malta das padarias de Setúbal que abastecem a península e que o fazem no primeiro barco que se lança ao rio.


Nascer do dia no Sado...

Junto com eles ia eu, num porão vazio de peito aberto à incerteza e ao sabor do mistério e da incógnita. Com uma ânsia tal que acredito fosse a força maior para tanto tremer ao invés do frio que cortava. A incerteza da jornada, os possíveis problemas no caminho, a total ausência de ajuda em muitas alturas, tudo isto e muito mais já não me turvavam os pensamentos, injectavam-me agora dose tal de adrenalina que seria impossível de controlar de outra maneira a não ser ceder à vontade louca de iniciar tal sacrifício pessoal.


A serra da Arrábida despedia-se...

Os primeiros quilómetros em asfalto zuniam já debaixo dos pneus enquanto o sol ia rompendo com a suavidade de Maio. Garças e cegonhas acordavam devagar em voos preguiçosos, à minha passagem. Pássaros grandes e pequenos, inundando o ar de um chilrear intenso, primaveril e alegre, foram a minha companhia enquanto relembrava as memórias recentes de uma outra jornada, de roda fina, resultante num fracasso pessoal como nunca havia experimentado antes… Num breve segundo percebo, a claro, a diferença entre situações. Além das evidentes diferenças entre condições climatéricas, esta aventura era apenas minha. Parte de um sonho antigo, e cumpridas que estavam agora as primeiras pedaladas, nada a não ser eu próprio, mesmo uma avaria grave, me impediriam de conseguir em solitário, vencer este desafio.
Na zona da Vala Real tive a primeira experiência de como a bike se portaria nos trilhos. Felizmente que a sensação foi a melhor ao perceber que todo o conjunto, apesar de algo tosco de comportamento e pesadão, se mantinha estável, funcional e aparentemente capaz de aguentar a dureza dos caminhos que se adivinhavam…


O conjunto...

Labuta matinal e diária...

O dia ainda jovem brindava-me com um céu azul limpo, de belíssima visibilidade. Os cheiros, os sons e o colorido das paisagens lembravam constantemente o que a Primavera tem de melhor e neste estado de salutar embriaguez fui seguindo viagem até que em Melides fiz a primeira paragem para café ao qual juntei um divinal pastel de nata. Depois de um breve descanso era hora de voltar de novo ao caminho. Os trilhos iam-se sucedendo rápidos, salteados com uma ou outra subidita, para apimentar o colorido dos campos, mas nada de muito puxado...


Em Melides...

Maquinão...

Caminhos perto de Melides...

E assim eu ia ganhando ritmo e entusiasmo e não fosse os barrancos irem-se sucedendo até poderia correr o risco da passeata se tornar monótona. Mas estes, cada um mais fundo e vincado que o outro obrigavam a extrema atenção a descer e um esforço hercúleo para subir. Tareia essa que se revelou muitas vezes impossível de cumprir pedalando. Subir montado esmagando os pedais na totalidade do percurso cedo percebi que não seria viável, quer pelo esforço empregue para vencer algumas das subidas quer pelo peso excessivo da traseira que tornava a frente numa peso pluma de crina eriçada e espírito irrequieto, impossível de manter em contacto com o chão durante as subidas mais empinadas.


Paisagem luxuriante de sobreiros...

Barranco de Livramento...

Auto-retrato no barranco de Livramento...

Subidita serpenteando logo a seguir a uma pequena ribeira...

A tentar vencer um destes barrancos descobri uma técnica para empurrar a bicicleta que, decerto, me salvou da completa exaustão. Essa simples técnica consistia em segurar o volante apenas com uma mão enquanto a outra segurava firmemente na parte traseira do selim, permitindo deste modo puxar com o braço esticado todo o peso, enquanto tranquilamente dava a direcção pretendida à menina. Empurrar 20kg com ambas as mãos no guiador era algo de incrivelmente extenuante e ao fim de alguns metros de subidas arfava já fortemente, com o peito colado no avanço, patinando a cada passo. O calvário demorou o suficiente até aprender que a técnica do puxa/empurra funcionava na perfeição safando-me desde aí até final, inclusive permitindo-me encarar algumas paredes com um sorriso no rosto do tipo: “Quanto mais me bates, mais gosto de ti.”
Depois desta sucessão de barrancos, acabei por fazer um curto intervalo para engolir, num ápice, o primeiro almoço pouco passava do meio-dia, num lugar chamado Bairro da Carapinha, ali costas com costas com Santiago do Cacém.
Os trilhos continuavam a surgir na minha frente rápidos e espectaculares. Ultrapassei enormes bosques de montado de sobreiros, predominantes nesta primeira etapa. Os tradicionais Montes alentejanos foram começando a surgir aqui e ali, muitos deles abandonados, lembrando um país que se perde, lembrando um êxodo antigo, para as cidades grandes da costa ou para fugir à adversidade de uma vida à custa da terra.


Primavera...

Muitas ribeiras cruzando os caminhos...

Um Portugal muito tradicional...

Mas sempre fascinante de paisagem...

Por esta altura já tinha a minha dose de sustos e de encontros imediatos com alguns canídeos, muitos de bom porte, que teimavam em aparecer onde menos esperava. Por mais que uma vez me vi rodeado de cães de todas as formas, cores e feitios, quase sempre de aspecto pouco amistoso e ávidos por fazerem o gosto ao dente em carne fresca. Ou pelo menos era assim que eu lhes entendia os rosnares que me deitavam.
Cheguei a cruzar-me com um Rottweiler que, estando solto, me fez quase literalmente borrar os calções quando para mim avançou, rosnando ameaçadoramente, levantando um dos beiços, com o ar menos dócil que se possa imaginar. Quis largar tudo e desatar a correr para fugir daquele bicho enorme, mas para onde?! Estava no meio do nada, apenas sobreiros para a frente, sobreiros para trás… Segurando a bike já desmontado encontrava-me numa situação verdadeiramente “merdosa”, mas teria que sair dela e inteiro de preferência. Se conseguisse seguir pelo caminho que o GPS indicava óptimo, se não, logo teria que arranjar alternativa… Com calma, recuperei o controlo sobre os nervos e calmamente fui ganhando, passo a passo e com muitos beijinhos atirados ao ar e palavras de amor dirigidas ao meu novo “amigo”, os metros necessários para o ver pelas costas e este me deixasse seguir o meu caminho sem maiores percalços. No entanto tal façanha obrigou-me a passar o perto suficiente para quase lhe sentir o bafo. Separados por uma bicicleta estava eu e um enorme cão solto, de péssimo feitio e nem vivalma para testemunhar tal sina. Havia de ter sido bonito havia, se a coisa tivesse corrido para o torto, como diz o meu pai…
Pelas 13h30 chego à Barragem de Morgavel, lugar que me fez vibrar de emoção. Não foi certamente pela beleza do lugar, inquestionável certamente, mas antes pela sensação que chegava agora plena de que o meu projecto já não era mais um sonho distante mas sim real, de cores alegres e convidativas… De suor e de sal.


A chegar à Barragem de Morgavel...

Era-me quase impossível deixar de fotografar deste e daquele ângulo. Ora pára aqui e logo acolá mais à frente para novo retrato à extravagante paisagem. Aproveitei também para deitar o olho aos trilhos que tinha escolhido para passear com a Catita no próximo final de semana e que correm ali paralelos ao caminho de asfalto, um pouco abaixo deste e que a certo ponto permitem estes também belas vistas sobre esta pequena barragem.


Só mais uma...

E mais outra ainda...

De novo ao caminho, como projéctil embalado pelo vento continuo a devorar quilómetros de caminhos, por vezes com bastante areia, dificultando fortemente a progressão, obrigando-me a forçadas peregrinações, sempre no puxa/empurra da menina…


O estradão aponta o Sul...

Areia...

Auto-retrato...

Sonega chegou como um oásis pois por esta altura e já com 90km percorridos eram hora de recarregar de novo as baterias atestando o estômago com mais uma gorda sandes de queijo e paio que trouxera de casa e uma Coca-Cola fresquinha, rematada com o belo do cafezinho queimado com borra no final, mas que soube quem nem ginjas, vá-se lá saber porquê.


Trilhos nas imediações de Sonega...

Auto-retrato em Sonega...

Do lugar apenas conheci o largo do Centro Comunitário, o largo principal portanto! E além de reparar que os peixes do pequeno lago já há muito se tinham afogado no fundo do charco, pouco mais houve que me tomasse qualquer sentido e sendo que estava apenas a 13km do final da jornada, foi pronto que me fiz ao caminho, que dai até ao Barranco de Adaíl foi rápido, intervalando com mais susto aqui, susto acolá, devido aos muitos cães que continuadamente fui encontrando pelo caminho.


Mais primavera...

O meu amigo e companheiro, o vento...

À sombra de um grande sobreiro fui encontrar o lugar ideal para a pernoita. Como da tenda apenas tinha trazido o tecto exterior por uma questão de peso, a montagem foi rápida e simples e uma vez organizado todo o interior, com respectiva arrumação do material e da bike, ficou horas de lanchar que fiz prontamente com o belo do lanche à laia de montanheiro e que me confortou a barriga por uma horita ou duas.


Local de pernoita... "Hotel Montado do Adaíl".

Arrumação e infra-estruturas interiores do meu hotel...

O lanche matreco...

Durante mais algum tempo fui passeando pelos jardins do meu hotel. Os raios de sol de final de tarde davam um ar melancólico à paisagem e foi já dentro do saco-cama que jantei mais uma dose de massa com um molho levemente parecido a bolonhesa, mas que empurrado com uma gigante caneca de chá e dois mini-chocolates como sobremesa cumpriu a tarefa de apaziguar o espírito e retemperar forças porque o dia estava quase no fim.


Pelas 18h30 esta era a paisagem...

A convidar ao descanso e a uma leitura...

Estranhamente não me sentia de todo cansado...
Após 100km de jornada, cifra que por norma me deixa sempre empenado no final, estava com as pernas de quem fez a volta pelo quintal. “Fresco!” – cheguei mesmo a arriscar no telefonema para casa.
No entanto, assim que deitei a cabeça na improvisada almofada, adormeci relaxado e profundamente...

Resumo da etapa:

Hora saída: 06H50
Distancia total: 102km
Tempo total: 08H52
Tempo movimento: 06H45
Velocidade media: 15.1km/h
Velocidade máxima: 50.5km/h
Acumulado de subidas: 1360m
Acumulado de descidas: 1262m


(Continua...)
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Ficam aqui os links para um filminho que fiz durante o passeio e para a galeria de fotos.

Video: http://www.youtube.com/watch?v=DR8TiKH5V84
Fotos: http://picasaweb.google.com/ratrak2005/TravessiaDoSUL#

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